Uma dúvida comum sobre transformadores

No post de hoje vou responder uma dúvida comum sobre transformadores e sobre a qual volta e meia me perguntam.

Para melhor ilustrar a questão usarei um e-mail que recebi há alguns dias e como eu disse é uma dúvida comum sobre transformadores.

Qual a voltagem e amperagem na saída de um transformador projetado para entrada 220 volts 3A, e saída 24+24 volts se ele for ligado em 127V?  O aquecimento neste caso será menor?

Meus “seguidores” já sabem que eu nunca dou uma resposta imediata e direta, porque se assim o fizesse você a teria apenas para aquela pergunta e como a vida está sempre mudando as perguntas, é melhor descobrir de uma vez todas as respostas.

Se você chegou agora vá se acostumando, com o meu “método socrático” de ensinar, ou melhor, de tentar fazer as pessoas aprenderem.

O que é preciso saber para resolver uma dúvida comum sobre transformadores (no mínimo)

Quando falamos de transformador devemos começar, pelo menos, com dois conceitos fundamentais:

  • Relação de espiras entre primário e secundário (Np /Ns)
  • Potência aparente que é expressa em volt-ampere (VA)

Na verdade, há um terceiro quesito que é a eficiência do transformador, isso para não falar em correntes de Eddy, histereses e perdas no cobre para não tornar o artigo muito teórico.

Voltando ao segundo tópico da mini lista de conceitos fundamentais sobre transformadores você pode estar querendo perguntar:

    – Não poderia ou deveria ser watts, tem que ser volt-ampere?

Se quisermos simplificar e desprezarmos a resistência ôhmica dos fios dos enrolamentos, podemos dizer que watt “equivale” a volt-ampère, mas o “melhor”, quando falamos de transformadores, é usar VA, porque estamos lidando com corrente alternada e por isso, alguns fabricantes, acertadamente, a meu ver, assim o fazem.

Outros usam o watt que é a unidade potência do SI quando não temos reatâncias envolvidas que não é o caso dos transformadores.

Há ainda os que trabalham a moda antiga e indicam a corrente no secundário.

Se você não sabe a diferença entre estas duas unidades de medidas elétricas, vale a pena dar uma lida neste artigo: “Watt e VA é a mesma coisa”.

Esclarecida esta dúvida podemos passar adiante.

Começando com a relação de espiras

A tensão que um transformador vai entregar no secundário depende, principalmente, do número espiras usadas nos enrolamentos primário e secundário e daí surge uma relação inevitável que eu apresento abaixo.

Vamos utilizar esta relação (odeio o termo fórmula) para o transformador da pergunta.

A especificação nos diz: Vp = 220V  e Vs = 48V (24+24) logo teremos

                                     

Antes que alguém pergunte, poderíamos também dividir Np por Ns e neste caso a relação de espiras seria 4,58? E eu respondo: – tanto faz.

O importante é que tenhamos em mente que a relação de espiras não irá mudar durante os cálculos porque ela é intrínseca a construção do transformador.

Vejamos agora a tensão que este transformador irá entregar no secundário se aplicamos 127V ao seu primário.

Espero que você tenha percebido que deveremos usar a “fórmula” acima onde Vp = 127V, mas Vs é “desconhecido”.

Lembre-se, porém que a relação de espiras continua sendo 0,22, logo podemos escrever

 

Portanto, Vs = 0.22 x 127 = 27,94 que podemos aproximar para 28V ou 14+14 que será a tensão na saída do transformador em questão.

Resolvida esta parte, precisamos passar ao problema da corrente e aqui há que se tomar um certo cuidado.

Energia não se cria, apenas se transforma

Este é um princípio fundamental da Física e que tem tudo a ver com esse momento em que iremos tratar da corrente no secundário do transformador objeto da dúvida do leitor.

O fabricante do transformador analisado especificou em 3A a corrente no secundário que fornecerá 48V.

Sabemos que o produto corrente vezes tensão nos dá potência e, portanto, neste caso a conta nos dará 144.

Entretanto, precisamos associar uma unidade de medida a este número. Qual delas:  watt (W) ou volt-ampere (VA)?

Como estamos tratando de corrente alternada, até porque transformador não funciona em corrente contínua, o correto será escrever 144VA.

Mas como energia não se cria, estes mesmos 144VA entregues no secundário serão solicitados ao primário quando este (o secundário) estiver fornecendo 48V a uma carga que consome 3A.

Qual será a corrente no primário?

Basta fazer a seguinte continha 144 = Vp x Ip e como Vp = 220V teremos Ip = 144 / 220 = 0,65 A (aproximadamente).

Pera aí, isto é a verdadeira “multiplicação dos ampères” (igual a multiplicação dos peixes?).

Vamos fazer uma outra conta. Vamos dividir a corrente no primário (0,65A) pela corrente no secundário (3A) e obteremos aproximadamente 0,22.

Ops! Este número já “pintou no pedaço”.

Lembra dele?

Isso mesmo é a relação de espiras deste transformador que obtivemos quando dividimos a tensão no secundário pela tensão no primário.

Ah! Então, a relação de espiras também pode ser obtida dividindo-se as correntes do primário e secundário?

Sim, mas com um pequeno detalhe.

O coisa ruim mora nos detalhes

Dê uma olhadinha na “fórmula” e veja qual é o detalhe.

Espero que você tenha percebido a inversão entre a “posição” das tensões no secundário e primário em relação as correntes.

Sendo assim, usando o princípio bíblico da multiplicação dos peixes aplicado aos transformadores podemos concluir que o transformador do leitor poderá fornecer 6A à carga se for alimentado com 127V em vez de 220V.

Mágica?

Não, pura ciência.

Falta responder uma pergunta: vai esquentar menos?

O que você acha?

Pergunta para o princípio da Física que diz que energia não se cria e acho que você vai chegar à conclusão que não vai esquentar nem mais menos e sim a mesma coisa.

Daqui pra fente, se a vida mudar o seu transformador você já sabe como encontrar a resposta.

E já que falei em peixes, eu nunca dou o peixe, no máximo o anzol e ensino você a pescar.

Assim, você poderá ir multiplicando os peixes pela sua vida toda.

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Paulo Brites

Técnico em eletrônica formado em 1968 pela Escola Técnica de Ciências Eletrônicas, professor de matemática formado pela UFF/CEDERJ com especialização em física. Atualmente aposentado atuando como técnico free lance em restauração de aparelhos antigos, escrevendo e-books e artigos técnicos e dando aula particular de matemática e física.

Website: http://paulobrites.com.br

14 Comentários

  1. Olá Professor.

    Antes de rotular como ‘gambiarra’ eu gosto de pensar em reciclagem, reaproveitamento, redimensionamento, ou outras palavras um pouco menos pejorativas.

    A intenção reportada foi de sondar a possibilidade do projeto, uma vez que que já possuo o núcleo e um enrolamento usável.

    A potência que este núcleo pode fornecer é igual a P = (a*b)^2 , no caso da maioria deles é 440 Watts.

    A potencia desejada é 360 Watts ( 18+18 = 36V ) multiplicado pela corrente ( 10A )

    Também é documentado a bitola do fio para suportar a corrente desejada na saída.

    Isso supostamente significa que é possível, mas antes de fazer pelo método de tentativas eu caí na besteira de perguntar se era de vosso conhecimento o numero de espiras que compõe os enrolamentos de um MOT.

    São coisas calculadas, assim como a relação de espiras que foi mencionada no artigo.

    Peço desculpas caso tenha poluído seu site com meus questionamentos.

    Sinta-se a vontade para excluir meus textos, e vamos em frente !!

    • Paulo Brites

      Não irei excluir porque o espaço aqui é democrático, como eu costumo dizer, só não vale xingar a mãe.
      O projeto de transformadores envolve um pouco mais que saber a relaçãp de espriras e a bitola do fio. É preciso saber a densidade de fluxo magnético em gauss. Vou mandar para o seu e-email uma apostila sobre projeto de trafos.
      Quando eu comecei minha vida de estudante eu fazia estas experimentações e aprendi muito com elas, hoje não tenho mais tempo para fazer esas coisas (infeizmente). Desculpe-me se o termo gambiarra o ofendeu não foi esta a intenção de levá-lo ao pé da letra.
      Esqueci-me que no seu caso o projeto tenho um cunho de experimentação.
      Segue por e-mail a apostila e talvez ajude.
      Projeto de transformadores é uma especialização dentro da eletrotécnica e tem as suas manhas e na é mim área.
      O objetivo do post foi tratar do básico e que muita gente não sabe.
      Pode poluir o site, só não pode poluir os rios com o transformador queimado rsrsrs.

  2. Ola Prof. Paulo.

    Tenho garimpado na internet toda informação possível sobre trafos, desejo fazer um transformador 18+18 com 10 amperes a partir de um transformador de microondas.
    Vi vários experimentos no youtube que ‘teoricamente’ funcionam, mas eles sempre retiram o enrolamento secundário e enrolam outro fio ali.
    O resultado é que sempre deparam com o aquecimento, já que aquele enrolamento primário foi projetado com outro objetivo.

    Pois bem, minha tentativa foi inverter a denominação deles, e liguei 127V no secundário, obtendo assim uma relação inversa desejada ( rebaixamento de tensão ) .

    Porém as medidas não foram satisfatórias, aquele primário de alumínio naquela bitola e quantidade de voltas me deram apenas uns 11 volts .

    Eu desconheço a quantidade de voltas que existe no enrolamento de fio fino ( originalmente o secundário ) , mas acredito que se eu retirar o fio de aluminio do outro enrolamento, mudar a bitola e a quantidade de voltas é possivel obter meus desejados 18+18V ?

    • Paulo Brites

      Meu caro, eu não gosto muito de fazer estes tipo de gambiarras, principalmente quando envolvem correntes altas.
      Para se projetar precisa-se saber informações magnéticas sobre o núcleo.
      Eu não sou eletrotécnico e portanto, não tenho prática sobre a construção de transformadores, primcipalmente, como eu disse quando se trata de correntes altas.
      Um trafo 18 + 18 para 10A de custar uns 80 reais no máximo, vale mais a pena.
      Quanto ao livro você não irá encontrar resposta para esta questão nele.

  3. rodrigo

    Olá, muito bem explicado e didático o tema abordado. Uma duvida sr Paulo, uma corrente maior não irá sobreaquecer mais? Fazendo uma analogia aos condutores elétricos que para uma mesma potencia e trocando de 220V para 127V a corrente aumenta e o cabo esquenta mais.

    • Paulo Brites

      Rodrigo
      Releia com atenção o artigo O que importa é o produto V X I Aumento a corrente mais diminui a tensão e aí a potência continua a mesma.

      Um detalhe que me lembrei agora e que esqueci de mencionar no artigo e depois irei fazer um comentário. Como o trafo foi originalmente fabricado para 3A o fabricante usou um fio para suportar esta corrente, portanto é possível que na prática não funcione.

      Sua pergunta foi interessante porque me chamou a atenção para um ponto que eu havia esquecido.

      Em resumo, você atirou no que viu e acertou no que não viu e me ajudou…

      • Rodrigo

        Grande Paulo, nem eu tinha me atentado a capacidade de condução de corrente do fio, sendo que ela esta diretamente ligada ao possível aumento de temperatura. Obrigado pelas informações valiosas que nos passa através de seu blog, sua expertise é sem igual.

        • Paulo Brites

          São os detalhes….
          Temos estar sempre com todos os sentidos bem ligados (literalmente)
          Abraços

  4. Saulo Moura

    Eu li seu artigo. Ficou fantástico!. Muito bem explanado.

    • Paulo Brites

      Obrigado Saulo

    • Paulo Brites

      Obrigado pela participação Adir
      É um tema importante, mas me parece, pouco explorado.

  5. Adauto

    Olá prezado Paulo, parabéns mais uma vez pelo ótimo trabalho no site.
    Só uma dúvida, a pergunta mencionada no artigo sobre a corrente de 3A não seria no primário do trafo ao invés do secundário? Nesse caso os cálculos mudariam certo?
    Abraços.

    • Paulo Brites

      Olá Adauto
      Eu creio que seja em relação ao secundário porque é assim que os trafos são vendidos por ai. Ninguém costuma falar na corrente do primário.

      Realmente se fosse a corrente no primário teríamos que rever os cálculos.

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