Comprar é preciso, viver não é preciso
O título é uma paródia que faço a uma frase atribuída a Fernando Pessoa – Navegar é preciso, viver não é preciso – que ficou mais conhecida na letra de uma canção de Caetano Veloso.
Entretanto, Pessoa “tomou-a emprestado” de Pompeu, um general romano nos anos 70 aC dando-lhe uma conotação diferente assim como tento fazer agora com a minha paródia ironizando “maliciosamente” os tempos modernos.
A ideia surgiu recentemente, nas minhas andanças pela Internet, quando descobri um Manifesto pelo Reparo, cujo lema principal é: – o que não se pode consertar não nos pertence.
Nestes tempos de pandemia, em que estamos sendo levados a refletir e repensar nossas, formas de vida (será que estamos mesmo?) este manifesto me parece que veio a calhar.
Eu comecei a ser um “reparador” lá pelos 12 anos de idade, portanto no finalzinho dos anos 50, chamados de “anos dourados” do pós guerra.
Naquela época os ferros elétricos de passar roupa, que substituíam os similares à carvão, custavam uma “fortuna”, então repará-los era obrigatório.
Mas tarde, acho que pelos anos 70, vieram os ferros elétricos com controle de temperatura, e o reparo, que antes consistia basicamente em “trocar a resistência” foi ficando mais difícil porque a resistência passou a ser embutida na base. Mesmo assim, ainda se conseguia fazer alguns reparos.
Existiam outros eletrodomésticos que mereciam reparos como torradeiras elétricas, liquidificadores e enceradeiras, por exemplo.
Eles eram feitos para “durar”. Não eram descartáveis e seus modelos não eram “revisados” de seis em seis meses para incluir “novas e modernas funcionalidades”. Além disso, como eram fabricados no Brasil, podíamos encontrar peças de reposição originais garantindo que o reparo colocava o aparelho “novo” outra vez, por um custo acessível e, o mais importante, não iria “alimentar” os lixões. Aliás, diga-se de passagem, creio eu que catador de lixo nem era uma “profissão” naquela época!
Todos ganhávamos, o reparador, a Indústria Brasileira que gerava empregos (aqui no Brasil, não na China), o consumidor e o mais importante, o planeta ou meio ambiente que não recebia toneladas de lixo a cada minuto.
Em outras palavras, reparar era ecológico e naquela época não se falava em ecologia.
Paradoxalmente, hoje fala-se tanto em ecologia e não podemos mais reparar nossos aparelhos e assim, eles não nos pertencem.
Primeiro porque a propaganda nos estimula a comprar o “último modelo” e segundo porque todos os entraves possíveis são criados pelos fabricantes para que não possamos reparar.
Tudo em nome do “crescimento econômico”, do PIB, dos investimentos e outras falácias que nos convencem que “comprar é preciso”.
Alguém pode argumentar, que não existem mais oficinas de reparos e quando as encontramos o custo do reparo é inviável.
Concordo que seja inviável, mas já parou para pensar por que é inviável?
Vou dar algumas dicas.
O reparo é um trabalho artesanal portanto, não pode ser feito em escala de produção o que torna a mão de obra, muitas vezes, mais cara que o custo de produção de um aparelho novo.
O reparo é feito por pessoas e não por robôs como boa parte da fabricação.
Os humanos envolvidos na produção ficam lá naqueles países asiáticos “oferecendo” uma mão de obra barata, mas “felizes” por terem um prato de comida.
Os custos com aluguel e impostos para manter uma oficina de reparos nos grandes centros são altos tornando o empreendimento insustentável.
Outro ponto importante que inviabiliza os reparos é que os fabricantes, às vezes, ou quase sempre, como eu disse, não estão no Brasil, não fornecem peças de reposição, nem instruções para o reparo e, em alguns casos, dificultam completamente a possibilidade de se abrir o equipamento com seus “parafusos proprietários” ou, até mesmo em caixinhas plásticas que não podem ser abertas facilmente para se trocar um simples fusível.
Para completar, o reparador é obrigado, pelo Código de Defesa do Consumidor, a oferecer ao seu reparo uma absurda garantia de 90 dias (seja lá qual for a idade do aparelho reparado) que é a mesma que o fabricante oferece (!!!) ao aparelho novo.
Talvez isso só aconteça por aqui. Eu sigo um blog de um engenheiro da Malásia (lá os engenheiros consertam!), Jestine Yong, que mostra que a realidade mundo a fora parece ser bem diferente daqui com técnicos e engenheiros reparando equipamentos que aqui no Brasil são encontrados nas calçadas das cidades por não se encontrar quem possa, às vezes, trocar um cabo de força partido, por exemplo, por um valor acessível sem ter que dar uma garantia de 90 dias completamente injustificável para o serviço que foi realizado.
A Era Maker
Mas então, como tentar ser ecológico reparando as coisas e não as descartando nos lixões se não encontramos que em as faça?
A resposta é: – usando aquilo que os americanos chamam de DIY – Do It Yourself – Faça Você Mesmo.
É claro que, em alguns casos, mais complexos isso não é possível.
Por exemplo, querer consertar um TV LCD ou um notebook, sem saber absolutamente nada de eletrônica é completamente inviável.
Entretanto, alguns eletrodomésticos mais simples podem facilmente ser reparados com alguns conhecimentos básicos de Eletricidade como eu mostro no meu e-book O que todas as pessoas precisam saber sobre Eletricidade.
Temos também reparos que não são em aparelhos eletrônicos como uma mesa com um “perna” descolada ou quebrada que pode ser reparada com alguma habilidade manual.
Neste item a Internet está cheia de ideias e sugestões, basta garimpar.
Já que estamos na Era dos Makers, que eu prefiro chamar de “fazedores”, por que não incorporar na nossa cultura aquilo que os americanos, por necessidade, já fazem a muito tempo?
Estes tempos de quarentena, obrigam as pessoas mais sensatas (e as que podem) a ficar mais tempo em casa, talvez seja uma oportunidade para desenvolvermos estas habilidades de acordo com os “dons” de cada um e mudar o sentido da frase para “Viver é preciso, reparar é preciso”.
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