O direito ao reparo, é preciso pensar sobre isso
No dia 2 dezembro de 2020, no auge da pandemia, mesmo assim, o Parlamento Europeu votou uma resolução para apoiar o direito ao reparo que os consumidores deveriam tem em relação aos equipamentos eletrônicos que adiquirem.
Esta notícia foi publicada na News Letter (Boletim de Notícias) do site IFixit.
Li a notícia divulgada no site do iFixit e me veio a mente este post “O direito ao reparo, é preciso pensar sobre isso” que ora você lê.
De alguma forma ele vem a somar com outro que escrevi aqui em 01/07/2020 Comprar é preciso, viver não é preciso que se você ainda não leu e está preocupado com nosso futuro aqui na Terra poderá ler cliclando no link em azul.
Voltando a resolução do Parlamento Europeu, segundo a reportagem citada, ela foi aprovada com 395 votos a favor e 94 contra (por quê?), tendo ainda 207 que ficaram “em cima do muro” (abstenções).
Nem contra nem a favor, muito pelo contrário!
A mensagem que o Parlamento Europeu quer passar é de que as empresas deverão expor uma rotulagem que indique a durabilidade dos seus produtos, desestimulando a obsolescência programada/prematura ao mesmo tempo que deverá mostrar o grau de reparabilidade dos mesmos.
A França promete que, a partir de janeiro de 2021, divulgará as classificações de reparabilidade de smartphones, laptops e outros produtos eletrônicos.
Numa linha de ação que, eu diria bastante promissora a favor da reparabilidade, a Áustria irá reduzir os impostos sobre serviços das empresas de reparo e fornecer subsídios para que o consumidor possa realizar esta tarefa, com o auxílio de algum técnico especializado, caso não tenha recursos ou habilidades para ele mesmo fazer.
A reportagem informa ainda que uma pesquisa demonstrou que 77% do consumidores europeus preferem que seus equipamentos sejam reparados em vez de substituí-los por “modelos mais novos”.
A mesma pesquisa menciona também que 79% deles pensam que os fabricantes deveriam ser legalmente obrigados a facilitar o reparo dos equipamentos digitais.
E por que os parlamentares da EU aprovaram esta resolução?
Será que lá os 395 que aprovaram a resolução entraram na fila da canonização para virarem santos um dia?
Saint Screw Driver, o padroeiro dos reparadores!
Tenho cá as minhas dúvidas.
Exceções sempre existem, para um lado ou para outro, mas minha interpretação é outra.
As associações de proteção e defesa ao consumidor na Europa são bem mais fortes do que no Brasil e têm uma agenda de reinvindicações que força os parlamentares a darem repostas positivas, basta ver a foto abaixo de setembro de 2019.
E por aqui na “terrinha”?
Eu cá, em se falando do Brasil, não fico tão otimista com estas notícias, vindas do lado de lá, pois, a dependermos dos nossos congressistas, provavelmente, pouco ou nada será feito.
As prioridades deles, com raríssimas exceções, são outras: reeleição, cargos no executivo, verbas, propinas, rachadinhas, dinheiro sujo (duplamente) na cueca e por aí vai.
E se o tema “virar moda” por aqui e eles vislumbrarem possibilidades de votos, cuidado, a emenda pode sair pior do que o soneto.
O tão decantado Código de Defesa do Consumidor só complicou a vida dos reparadores e por tabela dos consumidores que deveriam ser os verdadeiros “donos” dos produtos que compram.
O que não se pode reparar, não nos pertence.
Obrigar que o reparo de um produto, como está no CDC, seja lá a idade que ele tenha, seja os mesmos 90 dias de garantia do serviço que o fabricante é obrigado a fornecer ao produto novo é, no mínimo, uma total falta de conhecimento de causa.
Por outro lado, o CDC “obriga” os fabricantes a fornecerem peças para reparação de uma forma muito tênue e o que é pior, nada fala sobre informações técnicas que propiciem o reparo.
Parece mais ou menos óbvio que o lobby das indústrias falou mais alto nesta hora do que a defesa aos consumidores.
Conseguir que a garantia seja cumprida, pelos fabricantes, em muitos casos, vira uma batalha judicial e muitas pessoas acabam desistindo.
Aliás, a rede autorizada das empresas, tem um papel meramente protocolar na hora de atender a garantia colocando, na maioria das vezes, mil obstáculos para não garantir o “direito do consumidor” e sim da marca que representam, até o dia que deixarem de ser úteis e forem sumariamente, descredenciadas. Funcionam como capachos das marcas que “representam”.
Tais reinvindicações pelos consumidores europeus, pela imposição de que os fabricantes sejam obrigados a permitir o reparo de suas bugigangas eletrônicas, podem ter um viés ecológico ou econômico, mas o importante é que, uma mudança de comportamento nestas indústrias predadoras e destruidoras do planeta, cedo ou tarde terá que vir.
E estas mudanças não virão por altruísmo das indústrias que precisam garantir os lucros dos seus “acionistas” a qualquer preço e sim, por atitudes dos consumidores politicamente conscientes.
Só eles poderão agir forçando os governantes a tomar atitudes fortes ou até, mesmo boicotar, na medida do possível, aqueles que não se engajarem, honestamente, e não apenas mercadologicamente, numa pauta ecológica.
O quadro abaixo, produzido pelo IFixit, mostra uma pequena parte do problema para refletirmos.
Um dos itens do Manifesto pelo Reparo, produzido pelo IFixit diz: – O que não se pode reparar não nos pertence.
Mas, para poder reparar o que você comprou e pagou, na esperança que pudesse usar pelo maior tempo possível, é preciso que o fabricante forneça as peças de reposição, por um valor honesto, bem como todas as instruções necessárias para o reparo e eliminar os “parafusos proprietários” que exigem ferramentas especiais para removê-los
E quem tem que decidir qual o tempo que o produto é útil é quem comprou e pagou por ele e não o fabricante inventando novas facilidades com suas propagandas enganosas e que, muitas vezes, não interessam ao consumidor.
E o que é pior, ao introduzir estes “novos recursos”, inúteis para muitas pessoas, tornam, muitas vezes, o modelo “antigo” (de seis meses ou um ano atrás) inviável de ser usado, coagindo o consumidor a uma nova aquisição.
Por outro lado, o reparo é uma atividade quase artesanal que é realizada, não por robôs como a fabricação e sim, por humanos e que portanto, gera muitos empregos.
Antes que alguém argumente que o conserto, quase sempre, sai mais caro que comprar um novo e eu sou forçado a concordar, em princípio, que isto é um fato, e analisemos alguns dos “porquês”.
Pequenos reparos como em ferros de passar roupas ou liquidificadores, para citar eletrodomésticos simples, até podem ser realizados em espaços relativamente pequenos e por uma oficina com poucos profissionais o que reduziria os custos para a manutenção do negócio.
E, mais que gerar empregos o que por si já seria ótimo evitaria que estes produtos, ainda em condições de uso, acabem indo parar nos rios e nos mares.
O mal que causam é duplo. Primeiro pela quantidade de materiais que são extraídos da Terra, sem necessidade, e segundo pela poluição que o seu lixo irá causar.
Entretanto, não se pode esquecer que uma boa parte destes reparos dependerão de aquisição de peças que só os fabricantes do produto podem fornecer, pois, pouco a pouco, elas foram sendo customizadas, às vezes, até fora do Brasil.
E, além de customizadas, são modificadas, em detalhes desnecessários, de modo que uma peça que a faz a mesma função no modelo A não pode ser usada no modelo B (de um ano atrás), dificultando ou até inviabilizando um reparo banal.
Somente as autorizadas das marcas tem acesso a tais peças originais, mas elas não têm interesse em fornecê-las para manter o monopólio sobre o reparo e assim, cobrar o quanto quiser pelo serviço.
Um tiro no pé. Não ganham dinheiro honestamente vendendo peças e nem realizando o reparo porque o consumidor desiste.
Se o tiro fosse apenas no pé do dono da empresa o mal seria menor, mas a questão de dificultar ou impedir a reparabilidade de um produto, seja lá por quem o faz, tem um efeito negativo muito maior sobre o planeta.
Eu tive empresa de reparos por 14 anos e fui autorizado de algumas marcas como TecToy, LG, Vaporeto e Lavorwash.
Nunca dificultei a venda de peças de reposição para quem quisesse comprá-las.
Pelo contrário, estimulava, até porque era uma forma menos comprometedora de ganhar dinheiro honestamente.
Quando nos envolvemos no reparo assumimos o risco de “efeitos colaterais” imprevisíveis.
Por outro lado, o CDC não permite a “operação casada” de venda de peças de reposição vinculada ao reparo. A empresa autorizada não pode realizar esta operação casada.
Aí entra uma desculpa esfarrapada ao dizer que é apenas prestadora de serviços e não está autorizada a vender peças.
E quando a autorizada realiza um reparo e troca uma peça ela não está vendendo a peça ao cliente?
Minha política sempre foi informar ao cliente o valor da mão de obra para execução daquele serviço e, em havendo troca de peças, elas seriam especificadas e cobradas em nota fiscal separada.
Só não dá para “inventar” que trocou a rebinbela da parafuseta e por isso, o conserto ficou mais caro!
A esperança é a última que morre
Não quero ser um pessimista radical e achar que nunca será possível acontecer alguma coisa na direção de que um dia, por aqui, o consumidor venha ter direito ao reparo como está a começar a acontecer na Europa.
Também não para ser um otimista deslumbrado e pensar que os efeitos de lá chegarão aqui tão rapidamente.
Mudanças e conquistas só ocorrem com a mobilização da sociedade. Tem sido assim desde que o mundo é mundo.
A questão maior, a meu ver, é que as pessoas precisam ser alertadas para um problema sobre o qual poucos pararam para pensar.
O marketing produz uma lavagem cerebral enganosa que leva o consumidor a aceitar a descartabilidade como algo natural sob a falácia de progresso e desenvolvimento econômico.
Que progresso é esse que gera a destruição do planeta?
Cadê o desenvolvimento econômico na África, apenas para citar o mais “visível”?
Talvez o primeiro passo, a meu ver, seria educar o olhar das pessoas para aprenderem a “ver” o que está oculto e maquiado nas peças publicitárias.
É preciso mostrar as pessoas, de forma contundente, que “ter” não é sinônimo de felicidade que o marketing lhe bombardeia a todo instante mais que o coronavírus.
Há uns 10 anos ele estava só nos comerciais da tv nos intervalos dos programas.
Com aa “multi telas” ele passou a ser onipresente, quiçá, até enquanto dormimos”!
Aliás o que é felicidade?
Parafraseando Vinicius “A gente trabalha o ano inteiro,
por um momento de sonho … pra comprar um celular e tudo se acabar em pouco tempo”.
Tento fazer o que está ao meu alcance com os artigos que público mostrando aos técnicos como melhorar seus conhecimentos e reparar o maior número de produtos possível e com um orçamento razoável.
Dizem que “tempo é dinheiro”, mas talvez seja melhor inverter e dizer “dinheiro é tempo”.
Se o técnico reparador está bem preparado para executar o serviço num menor tempo ele vai “ganhar mais dinheiro” (honestamente) cobrando menos e convencendo o consumidor de que o “reparo vale a pena”, não só pelo lado econômico, mas, principalmente, pelo lado “ecológico”.
O consumidor hoje está ressabiado pois, para todo lado que olha só ver falcatruas, quando assiste os noticiários e acaba, sem perceber, chega na oficina achando que vai ser passado para trás (e, às vezes, vai mesmo).
Reparadores, sejam transparentes e honestos, parem de trocar a “rebimbela da parafuseta”.
Se você está lendo este post e não está ligado à área de reparação pode ajudar divulgando a ideia do “direito ao reparo”, debatendo com seus amigos e familiares na tentativa de conscientizar as pessoas de que já estamos no limite (há quem diga que já ultrapassamos em algumas áreas) da insustentabilidade do planeta com a geração desenfreada de lixo.
Seja uma formiguinha e ajude a fazer o que estiver ao seu alcance.
E, finalmenten não custa lembrar que seus comentários serão sempre bem vindo e serão respondidos por mim (não por um robo).
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