Minha sina é “ensinar” por este país, pra ver se um dia descanso feliz
Gonzaguinha, parafraseio aqui um pedacinho da sua canção para homenagear o dia dos professores porque você andava por este país ensinando as pessoas a serem felizes. Porque ser feliz é o que importa. É preciso ser feliz sem medo, mas também sem obsessão na busca da tal felicidade para não nos tornamos escravos dela.
Hoje, com a Internet eu até posso ir além deste país para cumprir a minha sina, mundo a fora, e um dia descansar feliz.
No fundo eu não gosto muito de usar a palavra “ensinar”. Prefiro dizer, “fazer as pessoas aprenderem”, porque ninguém ensina nada a ninguém, as pessoas é que aprende. Se quiserem, ou não. Vai depender de cada um, embora o mestre possa dar uma ajudinha. Ou também atrapalhar tudo.
Bem, mas neste caso talvez não deva ser chamado nem de professor, quanto mais de mestre, mesmo que tenha mil diplomas pendurados na parede.
Não basta “saber bem” o que explica, porque isto, certamente, está escrito nos livros e qualquer um pode ir lá ler e aprender sem precisar de um mestre explicador para lhe servir de uma mera muleta. Tem que saber não só o que explica, mas o porquê da explicação. Tem que contagiar, estimular, provocar o aluno. Tem que ser um ator que se metamorfoseia em triângulo retângulo ou átomo do carbono que acordo com o “papel” que vai interpretar.
Eu tive um professor de eletricidade no curso técnico que nós apelidamos de “zé elétron” ou algo parecido (rsrsrs).
O que o mestre precisa é ter, além do conhecimento de sua “disciplina”, a sagacidade necessária para despertar o conhecimento latente em cada um.
Galileu disse uma vez: – Nunca encontrei uma pessoa tão ignorante que não pudesse ter aprendido algo com a sua ignorância.
Afinal, todo “ignorante” sabe um monte de coisas, apenas não sabe que o que ele sabe também é um saber, nos “ensina” Jacques Rancière.
Ensinar não é simplesmente mostrar como encontrar as raízes da equação, a resultante das forças ou o sujeito oculto.
Isto está escrito nos livros, repito, e qualquer um pode ler e aprender, pelo menos o básico, por conta própria.
Ensinar é fazer o aluno descobrir aquele algo mais. É mostrar que o essencial pode estar nas entrelinhas que estão invisíveis aos olhos do não iniciado.
Eu quero isso. Eu quero um mestre que me deixe libertar-me das “verdades eternas e das certezas absolutas”.
Eu quero um mestre que apenas me “ensine” a aprender através da minha própria busca. Que seja, como diz um provérbio chinês, tal qual uma canoa que só é útil durante a travessia.
Eu quero um mestre que seja o veículo provocador da minha consciência.
Mas estes mestres não estão nas escolas, desde sempre, porque os sistemas, seja lá por qual “ismo” estejam rotulados, não os querem quebrando paradigmas.
A escola como instituição tem que “padronizar”, não tem necessariamente que “fazer aprender”.
Eu já fui um professor deste tipo há muitos anos quando comecei. Pouco a pouco fui me libertando das amarras do modelo de escola/fábrica/prisão.
De vez em quando, confesso, tenho uma recaída. Foram muitos anos de submissão ao modelo padronizador. Não é fácil se “descontaminar’ sem esforço. É preciso audácia. É preciso parar de olhar o mundo pelo retrovisor. Esquecer o clichê “no meu tempo”. O tempo do professor tem que ser o tempo de amanhã, não pode ser o tempo do ontem nem do agora porque o agora já passou. O tempo não para como nos disse Cazuza.
Cada turma é uma turma e dentro dela cada aluno é um aluno.
O professor pode saber o que está falando (talvez!), só não sabe o que aluno está ouvindo ou escutando.
Ouvir, vem do latim audire que significa perceber pelo sentido do ouvido. É, portanto uma ação meramente fisiológica. As palavras ditas pelo locutor/ professor passarão pelo aluno/ouvinte sem deixar marcas. Literalmente, como diz o ditado, “entram por um ouvido e saem pelo outro”.
Escutar, auscultare, também de origem latina é dar atenção, tornar-se atento para ouvir. Escutar vai muito além de ouvir, demanda uma reflexão, uma decodificação da mensagem, um processamento em que cada um de nós tem seu tempo próprio para executá-lo.
É comum se “ouvir” professores dizendo “eu expliquei direitinho e eles não entenderam nada”.
Aliás, na vida também é assim, não é mesmo?
Supondo que os alunos foram além do simples estágio de ouvir e entraram num outro plano de consciência que lhes permitiu escutarem, ainda assim, cada um interpretará o que escutou a seu modo, de acordo com suas crenças, seus valores, seus interesses momentâneos, suas necessidades. Enfim, seu “estado de espírito”, sua opinião formada.
Abraçar a “sina de ensinar” é coisa séria. Muito séria. O professor, queira ou não, finda sendo um formador de opinião mesmo que esteja ensinando matemática, física, química, eletrônica ou seja lá o que for.
Precisa “medir bem as palavras” e mais ainda, cuidar de suas atitudes.
Não custa lembrar Cazuza novamente e parafraseá-lo, porque “tuas ideias podem não corresponder aos fatos”.
Na vida não cabe o velho ditado popular “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, na sala de aula menos ainda. Não podemos ter dois pesos e duas medidas.
Não quero fazer um aluno “a minha imagem e semelhança”. Quero que ele seja critico o suficiente e que ele mesmo, inevitavelmente, me olhando como um “espelho”, veja minhas “manchas e arranhões” e tenha coragem e liberdade de apontá-las e eu, a humildade de ouvi-las, não apenas escutá-las, refletir e dialogicamente aprender com ele.
Como diz Cora Coralina “feliz é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina” e, acrescento o que aprendi com Gonzaguinha, assim “um dia poderá descansar feliz”.
Tento isto a todo a instante, para ver se um dia descanso feliz e com a sensação da “missão cumprida”, como diz o clichê.
Feliz dia do mestre para todos os mestres (apresar dos salários baixos e das escolas ruim) e porque não, também todos os alunos, que mesmo “ignorantes” naquilo que estão buscando aprender, são “mestres” em alguma coisa na vida.
Professores e alunos, livremo-nos do “alguém tem que fazer alguma coisa” e façamos nós “esta alguma coisa” com nossos esforços, nossos erros e nossos acertos. Não é fácil, eu sei que não é fácil, mas o importante é tentar, aqui e agora.
Gostaria de terminar esta mensagem com uma recomendação de leitura, não só para professores, mas também para pais e mães que são nossos primeiros professores na vida: leiam O mestre ignorante – Jacques Rancière.
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